sábado, 11 de dezembro de 2010

Identidade e Negritude

Identidade e o ser negro na sociedade atual

Ir. Maicon Donizete Andrade Silva, FMS

Introdução

Vivemos numa sociedade marcada pela diversidade, seja cultural, étnica, religiosa, de pensamento ou de expressões diversas quanto ao jeito de vestir-se e se comportar. Um dos grandes desafios que um mundo contemporâneo nos apresenta diz respeito ao modo como lidamos com tal diversidade.

Essa realidade sinaliza a importância de um reconhecimento das diferenças culturais e étnicas que nos constituem, possibilitando-nos perceber que o ambiente onde nos encontramos inseridos tem papel um fundamental no processo de desenvolvimento de nossa identidade enquanto sujeitos. Por isso, a uma reflexão sobre consciência de negritude torna-se necessária para colaborar com o desenvolvimento de uma identidade afrodescendente que resgate a história e busque o fortalecimento das lutas do povo negro no hoje da história.

Identidade: conceituação e importância

A reflexão identitária é fundamental na construção do sentido e compreensão da própria existência enquanto indivíduo e como pessoa inserida na sociedade.

O termo identidade origina-se do latim identitas, que significa “idem”, “o mesmo”. Segundo o pesquisador Ricardo Franklin Ferreira (FERREIRA, 2004), identidade pode ser considerada como uma referência em torno da qual o indivíduo se constitui, estando em constante transformação e construída a partir das relações que ele estabelece consigo mesmo, com o outro e com o ambiente à sua volta. Podemos compreender essa construção da identidade como um processo dinâmico em torno do qual o indivíduo se referencia, constrói a si e a seu mundo e desenvolve um sentido de autoria, ou seja, faz o caminho de autoconscientização, tornando-se sujeito e artífice na vivência da sua identidade.

Identidade é uma categoria efetivamente importante para compreendermos como o indivíduo se constitui, influenciando sua auto-estima e sua maneira de existir. Neste sentido, é fundamental, para a compreensão da problemática do afro-descendente, o conhecimento da maneira como ele desenvolve sua identidade, principalmente em contextos sociais adversos, onde é discriminado. Isso nos ajuda a perceber que o indivíduo parte de uma determinada realidade legitimadora das estruturas de dominação e faz o caminho de percepção do valor da resistência como meio para a construção de uma identidade sustentada em torno de um projeto sólido.

Negritude: o despertar de uma consciência

Uma reflexão acerca do conceito de negritude, hoje, surge como verdadeira necessidade e também como oportunidade. Primeiro como necessidade, pois nos convida a ler a realidade e perceber como a negritude tem sido vista e mostrada pela sociedade e como os próprios negros e negras lidam com esse tema. É uma oportunidade, porque surge como uma chance de mostrar as riquezas que a cultura e as tradições afro-descendentes carregam.

Podemos definir negritude (do francês négritude) a partir do nome dado a uma corrente literária que agregou escritores negros de língua francesa e também um modo de pensar a identidade a partir da valorização da cultura negra em países africanos e com as populações afrodescendentes nos diversos cantos do mundo, vítimas da opressão colonial.

Uma outra definição que nos é apresentada pelo Aurélio diz que negritude consiste na “fase de conscientização, pelos povos africanos, da opressão colonialista, a qual busca reencontrar a subjetividade negra, observada objetivamente na fase pré-colonial e perdida pela dominação da cultura branca ocidental”. As duas conceituações apresentadas mostram-se complementares. Hoje elas nos ajudam a compreender a negritude como busca de reafirmação da identidade por parte dos povos afro-descendentes. Dois elementos importantes são destacados: valorização cultural e conscientização. São dois eixos fundamentais na luta em defesa da dignidade de um povo.

A partir dessas conceituações podemos perceber a negritude como um processo de conscientização feito pelo agente negro quanto ao seu valor racial. É um caminho de auto-valorização e percepção do seu papel enquanto sujeito de direitos na da sociedade.

Resgatando a história do povo negro no Brasil

A história dos afrobrasileiros convida-nos a olhar o que significou a presença desse grupo em terras brasileiras, por ter sido um povo que contribuiu de forma significativa com a estruturação social, política, econômica e cultural da nação.

Ao longo desses séculos de convívio das populações negra, européia e indígena no Brasil, ocorreu o processo que chamamos miscigenação. Dessa forma, deu-se a mistura entre esses povos e, por conseguinte, aqueles que descendem de forma mais direta da herança africana a partir dos valores culturais, da culinária, da cor da pele, o modo de pensar, a revolta contra a escravidão dos antepassados e o comércio de seus cocidadãos, são considerados afrobrasileiros.

Os primeiros 30 anos de colonização caracterizaram-se pelo povoamento e exploração extrativista do pau-brasil. Até então, era utilizada a mão de obra indígena que, sob o poder dos colonizadores, eram obrigados ao duro trabalho de estração da madeira. Praticava-se o chamado sistema de escambo, troca de produtos sem fazer uso de moeda, ou seja, a troca da atividade realizada por mercadorias de baixo valor.

Diante das dificuldades encontradas pelos europeus no processo de escravização dos indígenas, os colonizadores encontram a utilização de escravos africanos como alternativa. Iniciou-se o trafico com negros vindos da Africa que tiveram roubadas sua dignidade africana, sua cultura, sua liberdade e lançados numa terra estranha para trabalharem na condição de escravos. Condicionados ao esteriótipo “propriedade senhoril”, eram obrigados a diversas atividades, destacando-se as atividades agrícolas (lavoura), especialmente o cultivo da cana-de-açúcar.. Também atuavam na mineração (estração de ouro) e os serviços domésticos.

A atividade do tráfico negreiro foi extremamente lucrativa e se estendeu até 1850, quando com o decreto da Lei Eusébio de Queirós que proibiu o tráfico de escravos. Já em 1871 foi promulgada a Lei do Ventre Livre, que garantia a liberdade aos filhos de escravos nascidos a partir daquela data. O sistema escravista se enfraqueceu mais ainda em 1885 com a Lei dos Sexagenários, que libertou todos os escravos com mais de 60 anos de idade. Vale lembrar que todas essas leis vieram como pressão de uma sociedade que já não suportava mais a realidade da escravidão. É importante lembrar que todos esses “libertos” foram lançados numa sociedade sem a menor estrutura para acolhê-los, deixados à marginalização e à própria sorte. Não havendo mais sustentabilidade do sistema escravagista, no dia 13 de maio de 1888, a Lei Áurea foi assinada pela Princesa Isabel, extinguindo oficialmente a escravidão no Brasil.

A história nos ajuda a perceber que ser afro-descendente significa ser herdeiro de uma caminhada de luta e resistência do povo negro. Foram três séculos de exploração que produziram duras consequências, como: desiguladade, pobreza, discriminação, violência, os cortiços e favelas. São duras realidades que se estenderam ao longo dos tempos. Se temos uma grande massa de explorados hoje é consequencia de uma história de exclusão e negação do direito de vida digna aos empobrecidos.

Movimento Negro: organização do povo negro na defesa de sua dignidade

Movimento Negro é o termo genérico usado para designar o conjunto dos diversos movimentos e organizações sociais protagonizadaos pelos afrobrasileiros. Esses movimentos de organização do povo negro perpassam toda a história do Brasil. Até a Abolição da Escravatura em 1888, estes movimentos eram quase sempre clandestinos e de caráter radical, visto que seu principal objetivo era a libertação dos negros escravizados.

A partir disso, um ponto significativo a constatarmos é que o Movimento Negro tem seu surgimento com a chegada do primero negro no Brasil. Aí iniciou-se a luta e a resistência de um pouco “tirado à força”de sua nação para ser escravizado nas novas terras de colonização. Essa resistência se deu no passado e, hoje, continua viva no coração de cada negro que luta.

Organização do povo negro no âmbito eclesial

No campo eclesial, a organização do povo negro se deu de forma efetiva através da Pastoral Afrobrasileira. A Pastoral Afro constitui-se como ação organizada do povo afro-descendente no seio da Igreja Católica, como espaço para o cultivo da valorização e o reconhecimento de sua identidade enquanto negro/a.

Esta Pastoral forma-se a partir da articulação entre ricas experiências no seio da Igreja do Brasil, como os APNs (Agentes de Pastoral Negros), GRENI (Grupo de Reflexão dos Religiosos Negros e Indígenas), Instituto Mariama e outros. Assim, percebemos que esses são espaços decisivos na via eclesial que muito colaboram no processo de construção da identidade do povo afro-descendente. São grupos de ação diretamente ligados à Pastoral Afrobrasileira que, em comunhão com a Igreja, buscam tecer um novo olhar de sociedade na ótica da negritude.

A Pastoral Afrobrasileira e a construção da identidade afro-descendente

A Pastoral Afrobrasileira exerce papel fundamental no processo de levar o indivíduo a conscientizar-se quanto às origens africanas embutidas no(a) negro(a) afro-descendente.

É significativo destacar a importância dessa Pastoral e dos diversos grupos que a integram numa missão que se soma (Agentes de Pastoral Negros - APNs, Grupo de Religiosos e Religiosas Negros(as) e Indígenas - GRENI, Instituto Mariama- IMA e tantos outros), como espaços que oportunizam ao afro-descendente conscientizar-se quanto ao valor da sua identidade enquanto negro e negra, bem como o seu papel enquanto agente transformador na construção de uma nova realidade social;

Sabemos que o processo de construção da identidade afro-descendente é lento e, para que seja efetivo, é preciso que a sociedade como um todo e a própria Igreja assumam, de forma efetiva, a missão de formar um povo consciente daquilo que é, suas origens, os valores que carregam e as possibilidades de uma caminhada feita em comunhão. Negros, indígenas e brancos, como constituintes fundamentais da nação brasileira, todos são chamados a viver uma unidade integrada a partir das suas diversidades.

Avanços e perspectivas para a caminhada do povo negro no Brasil

A história do povo negro no Brasil apresenta-se a nós como caminhada de luta e resistência. Muitas foram as conquistas ao longo do caminho. Mas ainda há que se superar o grande abismo social que separa ricos e pobres, entre os quais os negros se encontram entre os mais pobres da sociedade brasileira, sendo, assim, vitimados pelo preconceito, o massacrador sistema prisional, o desemprego e a falta de uma educação de qualidade que lhe dê possibilidades de buscar um futuro melhor. Além das lutas no campo social, convém mencionar a necessária continuidade no processo de luta em busca de uma verdadeira “cidadania eclesial.”

Recentemente foi aprovado pela Câmara e o Senado, e, sancionado pelo presidente Lula, o Estatuto da Igualdade Racial. Este é um significativo instrumento, fruto das lutas do povo negro, concebido para alcançar direitos essenciais à população negra brasileira em sua totalidade e, portanto, crianças, adolescentes, jovens e idosos são destinatários e beneficiários da norma.

O Estatuto tem caráter compensatório e, sobretudo reparatório, no sentido de garantir direitos historicamente negados ao povo negro, de forma que lhe conceda condições de promover-se enquanto pessoa na sociedade. O documento final assegura leis que tem por objetivo combater a discriminação racial incidentes sobre a população negra e a implementação de políticas públicas pelo Estado contemplando os seguintes eixos de atuação: saúde, educação, cultura, esporte, lazer, liberdade de consciência, de crença e livre exercício dos cultos religiosos, financiamento das iniciativas de promoção da igualdade racial, e moradia adequada, direito dos remanescentes das comunidades dos quilombos às suas terras, mercado de trabalho, entre outras.

Concluindo

Conscientes de que a história nem sempre colaborou para que essa unidade se construa de forma efetiva, fica para todos como lição e aprendizado da caminhada. Que os erros cometidos no passado das relações senhor/escravo, de uns se sobreporem aos outros, sirvam de lição para que percebamos que somos chamados a viver a partir de um “ethos” comum que nos integre como seres humanizados e capazes de também humanizar nossas relações.

A utopia de se chegar ao reino definitivo e do Quilombo-Páscoa já começa a acontecer na dura realidade da comunidade negra. O que motiva esta caminhada são as luzes que cada dia brilham no horizonte de nossa terra e de nossa história. Em cada novo grupo que surge, em cada encontro que se realiza, em cada negro(a) que descobre a sua negritude, em cada negro(a) que nasce, em cada negro(a) que aceita o desafio de levar a negritude avante, pois é por meio dessa realidade de redescoberta de nossa liberdade, de nosso jeito de ser a nossa cidadania, que a força do axé se multiplica. Para cada negro que tomba lutando pela causa da negritude, outros cinco virão, para levar à frente a nossa história, nossa cultura, nossa religião e nosso axé (In TEIXEIRA, Sebastião (sdb). Vida Religiosa e Negritude. Convergência, n. 284, 1995).

Sejamos os sujeitos, verdadeiros protagonistas, na missão de construir um mundo onde todos sejam conscientes de suas origens e sua identidade, pessoas capazes de desenvolver uma postura de valorização das suas raízes. Tracemos nossa marca no mundo a partir de uma cultura do cuidado e do acolhimento das riquezas que as diversas culturas nos apresentam.